sexta-feira, 28 de maio de 2010

Diário de um Caminho - Dia 4

Dia 4:  Ourense – Cea

Serão seis, sete horas da manhã? De nada interessa, aqui as horas e o tempo são relativos. Ao primeiro alvoroço, todos os peregrinos despertam no antigo Mosteiro de Ourense. A mochila já foi arrumada na véspera, não há tempo a perder, o Caminho espera-nos, 22 km aproximadamente para chegar ao nosso destino Cea.


Lá fora não se avista vivalma apenas peregrinos atarefados, “Bon Camiño” até Cea ou
encontramo-nos em Santiago. Ainda não amanheceu, o frio e a chuva rapidamente se fazem sentir, está na altura de regressar ao uso dos ponchos. A cidade ainda dorme, alguns cafés começam a abrir, os jornais e o pão são entregues. Após um pequeno-almoço, no café mais próximo, a cidade lentamente desperta.


Adeus Ourense, mas antes um ultimo contemplar para a majestosa Catedral. Vamos em busca das Fontes de las Burgas, uma das nascentes de água quente situadas no coração da cidade. Encontramos uma habitante local que muito amavelmente nos explica, que é tradição antes de começar a trabalhar, passar pela fonte e inspirar literalmente a água, a 67ºC, pelo nariz e limpar os ouvidos, garantindo assim não só a limpeza (não há bicharoco que resista a 67ºC J ), como também purificação e saúde para o novo dia que se avizinha. Escusado será dizer que… um a um lá imitamos o ritual ancestral, ainda pensei, há quem acorde com um balde de água fria, mas garanto-vos que após este escaldão qualquer pessoa fica pronta para o que der e vier!!!

Atravessamos a ponte romana datada do Século I e reconstruída no século XII que une as duas margens do rio Minho, dou por mim a pensar que fazemos parte da história contada por aqueles pilares, quantos milhares, milhões de peregrinos não deverão ter passado por ali na sua viagem até Santiago… e eu fiz parte!! Um daqueles momentos difíceis de relatar … Com grande satisfação despedimo-nos de Ourense (espero voltar ainda este ano com a família para desfrutar de tão bela cidade e termas).
Com a cidade a desaparecer nas nossas costas, os primeiros raios de sol tímidos começam a espreitar, atravessamos pequenas povoações de traços nitidamente medievais com as suas praças e pelourinhos. Entramos no que se chama o Camiño Real, na minha cabeça fervilha enumeras respostas ao porque deste nome, talvez em tempos antigos alguma Corte Real atravessou este caminho? Será que foi construído a mando de algum Rei ou quiçá atravessava propriedade real. A resposta não a sei bem, mas creio que é a designação da antiga rede nacional de estradas, mas o nome foi ficando de geração em geração chegando aos nossos dias.

Havia dois tipos de peregrinos na idade média, o tradicional que percorria a pé ou a cavalo os caminhos tradicionais em busca de um perdão na terra do santo apóstolo, o peregrino mais abastado que pagava para fazerem a peregrinação por ele ou então o peregrino benfeitor que ajudava na construção dos caminhos e albergues. Não só repleto de história e de imensa beleza este caminho real é sem dúvida um caminho árduo de intensas subidas íngremes em pedra irregular. A chuva recomeça a cair, mas a nossa temperatura corporal aumenta devido ao esforço físico e com ele as reservas de água começam a escassear e as paragens de descanso tornam-se numa constante. 
A simpatia dos espanhóis é notada, falta pouco!! Querem água? Bom Camiño! As nossas garrafas voltam a ficar cheias à custa da mangueirada de uma habitante local.
Entramos numa frondosa floresta, repleta de árvores centenárias, musgos e líquenes, alguns terrenos alagados fazendo lembrar pântanos. Com este cenário a nossa estrada vira um campo de batalha, lama por todos os lados que muito dificilmente se consegue ultrapassar sem ficar com o “barro” até as orelhas. As minhas botas não escapam, após infrutíferas tentativas de desvios alternativos rendo-me à evidência e sigo em frente. O caminho também é utilizado pelo gado bovino, que de manhã bem cedo, sai das vacarias da aldeia e vai alimentar-se nos campos alagados e verdejantes. Dupla escorrega, lama ou dejectos qual deles escolher?? J

Passando pela ponte medieval de Sobreira, entramos no Conselho de Cea, que no século XII pertencia ao Mosteiro de Oseira que mais tarde falarei. Exaustos, com fome, encharcados e imundos… parte do grupo chega primeiro ao destino - San Cristóvão de Cea, muito célebre pelo seu pão e pelo conjunto de casas tradicionais, fornos comunitários, alpendres e espigueiros. O nosso Albergue, casa rústica de aldeia tão bem restaurada, foi alcançado com algum turbilhão! Lição apreendida quem chega a frente não pode reservar os lugares para quem esta mais para trás, cada um por si…
Enquanto uns se refrescam e descansam, eu, o Fotografo e o Australiano resolvemos partir em busca de alimento para a alcateia. Má sorte, chegamos à hora da “Siesta”, tarde de mais para almoçar, cedo demais para jantar. Por um acaso ou destino entramos numa padaria para provar o tão afamado pão, quando uma senhora gentilmente diz que cozinhará para nós! Sem duvida uma das melhores refeições do Caminho…
Após uma tentativa de banho, ora água gelada ora a escaldar, os nossos dois heróis regressam com o manjar, após um take away algo chuvoso. A Família reúne-se em volta da mesa para partilhar a refeição… nem deu tempo para a reportagem fotográfica. Caldo galego acompanhado pelo Pão de Cea, pão tipo Sêmea de mistura cozinhado em forno de lenha, é rapidamente reduzido a migalhas. “Paella de carne” o prato principal e “Postre”: Arroz com “leche”, não esquecendo o vinho Rioja. Jantar tipicamente espanhol multi regional. O convívio e a galhofa são uma constante que começa a contagiar as mesas vizinhas.

Conhecemos um casal já bastante idoso que veio de Barcelona, muito simpático e atencioso, de um espírito de sacrifício surreal como podemos constatar nos dias seguintes. Um belga aparece vindo de Madrid, veio libertar-se do stress da faculdade não fazendo ideia para onde vinha, nem credencial tinha e sem isso não pode usufruir da estadia do Albergue, á socapa lá se aninha num beliche, amanha terá que resolver o assunto, não o voltamos a encontrar. Um grupo bastante animado de Ourense constituído por três filhos e o pai Avelino, assim como uma amiga e um primo de Vigo que logo se apresentou, irão ser os nossos companheiros de viagem mais para a frente.

As mazelas começam a aparecer, bolhas de tamanho de ovos de codornizes, fricção por atrito e dores musculares, e eu??  Nada J , o segredo hidratar e massajar muito bem os pés com um creme gordo a noite e de amanha antes de partir proteger as zonas potenciais de atrito com “Compeed”, e muitos alongamentos musculares nas “paragens técnicas”. As idas ao monte e ginásio começam a fazer-se notar J.  O Xico é o primeiro a bater à porta do gabinete do nosso fotógrafo, agora também enfermeiro em part-time. Os primeiros fios são passados pelas bolhas e os  pés são enfaixados.

Amanhã a meta será Castro de Dozon, faremos um desvio no Caminho para o famoso Mosteiro de Oseira. “Flio, muito Flio, muito muito Flio” são as palavras da mana nipónica mais carismática e bem razão tinha ela.

O cansaço invade-nos a todos, excepto o nosso Australiano, que parece que mais uma vez não tem sono e fala pelos cotovelos, logo é calado por uma das manas que diz xiiuuuuu já são onze da noite, horário de silêncio obrigatório. Ao longe alguém ressona, a mente já não liga, o corpo é quem comanda, uma nova aventura nos aguarda…



Texto by Lai
Fotos by 
Sight
  
(continua…)

6 comentários:

  1. A gente se sente um pouco no caminho ... excelente !

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  2. Olá

    Nunca fiz nenhum dos caminhos de Santiago, mas conheço muito bem alguns dos locais aqui descritos e agora,lendo estes textos, é como se parte de mim também lá estivesse.
    Obrigado por me fazer sentir essa realidade.

    De facto andei ausente da "blogosfera" algum tempo,por motivos pessoais, espero estar de volta e animado.
    Obrigado pela visita e apoio!

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  3. Pode ser cansativo, mas as experiências são fantásticas, aprende-se muito pelo que me tenho vindo a aperceber nestes teus relatos.
    beijinhos

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  4. Olá...!

    Sabes...? O meu blog conta já com um ano...! E para a ocasião escrevi algo que também é para ti... e, de passagem, podes ver que há um selo que podes levar, se assim o quiseres... Pois, como o seu nome indica, serve para "selar" este vínculo que nos uniu neste tempo transcorrido..., isso me encantaria..., e faria completo este festejo e a minha alegria...!
    Ou se não..., ofereço-te uma flor de Ceibo que é a flor do meu país: Argentina.

    Obrigado pela tua presença...!

    Cumprimentos,

    SERGIO.

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  5. Parabems. Facer o Caminho e tuda unha experienza. Eu terminé, esta ves, en Burdos desde Roncesvalles. Pero xa cheguei o año pasano a Fisterra.
    Non conozco a caminho sanabrés mais habé de facelo algun dia, despois de chegas a santiago de novo.

    Saludos

    CristalRasgado & LaMiradaAusente
    ________________________________

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  6. Olá. os meus parabéns pelo vosso diário, descrevendo, na perfeição a vossa aventura/peregrinação. Para quem, como eu, nunca pensou em fazer os caminhos de Santiago, ler os textos e ver a fotos, são um despertar para esta missão. Que tudo corra pelo melhor. Cumprimentos, Jorge Sousa www.ibernatur.blogspot.com
    www.bota-rota.blogspot.com

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