sexta-feira, 25 de junho de 2010

Diário de um Caminho - Dia 5





Dia 5: Cea – Castro de Dozón

Um dia mais no nosso Caminho, ainda não amanheceu e já estamos prontos para partir de novo. Começa a ser uma constante madrugarmos com a noite ainda a despedir-se, um recomeçar. Dou por mim a ritualizar a cerimónia da partida, como se de um piloto automático se tratasse, só acordo com o ar frio que emana lá de fora... Mais um dia árduo pela frente, a chuva não deu tréguas durante a noite, tudo se encontra alagado.
Um a um saímos do Albergue de Cea, em silêncio para não acordar os poucos peregrinos que não resistiram ao cansaço e às dores musculares já acumulados de anteriores jornadas.

O Sr. Manolo com ar muito ensonado, lá abre as grades de uma das tabernas da Vila, sendo o único estabelecimento aberto, rapidamente se enche com os peregrinos ávidos por um café matinal. Sem mãos a medir, começa a chamar os familiares do andar de cima para virem ajudar no pequeno-almoço; aqui os peregrinos são sinal de lucro, principalmente nos dias difíceis que atravessamos. O calor e as primeiras risadas matinais contrastam com a chuva e a escuridão que se estende lá fora. Guardo na memória as últimas palavras proferidas pelo “mestre taberneiro” na despedida: “Bom Camiño e que viva o suficiente para vos voltar a reencontrar numa outra viagem…”

O Caminho é retomado em Cea, o destino Castro de Dozón, mas vamos fazer um desvio, mais do que obrigatório, para visitar o Mosteiro de Santa Maria de Oseira. O início do percurso é marcado sensivelmente por asfalto, tornando-se penoso devido à intensidade da chuva e a um fustigar contínuo do vento. Entretanto, amanhece e nem demos conta, só olho para o horizonte em busca do bendito Mosteiro que para além de ser um grandioso monumento vai-nos dar guarida e um sítio seco para recuperar as energias. Ei-lo!!! Após uma subida, contemplamos, como se de conquistadores nos tratássemos, o magnífico edifício ainda envolto na neblina matinal. Que majestosa visão. Muitos peregrinos antes de nós devem ter sentido o mesmo, um porto de abrigo, reina entre nós um silêncio de contemplação.



Mosteiro com tradição secular de acolhimento de  peregrinos, ainda hoje (com marcação) prévia pode-se pernoitar neste abrigo histórico, mas com um senão: não há água quente!!! Só para os mais audazes… Oseira é um mosteiro da Ordem de Cister que tem como destaque a sua igreja do século XII, um exemplo típico do romantismo galego com influência da Catedral de Santiago, ladeado por três grandes claustros que foram adicionados nos séculos posteriores.
Ao aproximarmo-nos do mosteiro deparamo-nos com uma manada de vitelos que faziam o seu repasto nos jardins que circundavam o mesmo, perfeita comunhão da natureza e civilização. Foi-nos explicado mais tarde que ainda existem alguns monges que regressaram à abadia e que tal como em tempos passados, subsistem com gado e hortas por eles cultivados, claro está sem faltar as famosas bebidas espirituosas, neste caso, licores dos mais variadíssimos sabores. Porque será que os frades se dedicam aos licores e as freiras aos doces conventuais?
As visitas guiadas são realizadas de hora em hora e tem a duração aproximada de uma hora também. Apesar dos alertas prévios e constantes da nossa amiga nipónica, a roupa que levávamos era insuficiente para tanto frio, aquelas paredes e abobadas de pedra não davam tréguas, havia locais onde não passava um raio de luz solar, o frio associado às roupas molhadas da intempérie fizeram com que batesse o dente e de que maneira J! A motivação de continuar a visita veio do nosso guia, um apaixonado pela profissão, consegue-nos facilmente cativar e envolve-nos com histórias da realeza e clero, de invasões e pilhagens pelo povo e de como foi restaurado até chegar aos nossos dias; por momentos podemos recuar no tempo e viver de novo na idade média.


A hora do almoço chegou e a proximidade de uma taberna típica repleta de chouriços caseiros ao dependuro e dos inúmeros licores espirituais, ditaram que por unanimidade fosse este o local escolhido para o repasto. Brinde a nós peregrinos e à continuação de um bom Caminho, o frio rapidamente se esvaneceu devido ao teor alcoólico da especialidade local, acompanhada por um “bocadilho” de chouriço e rematado com o já famoso caldo galego. Estamos prontos para o que der e vier!!!

A chuva começou a dar-nos tréguas mas, o resultado evidente das mesmas estava à vista. Caminhos tortuosos e cheios de lama faziam com que tentássemos desvios alternativos. No início, ainda tentava poupar as botas e desviava-me, a meio já desisti e rendi-me a evidência, era sempre a andar, o material era secundário, a meta Castro de Dozón. Apesar do meu olhar se concentrar na escolha de onde colocar os pés, a beleza do caminho era estonteante. Muros naturais formados por líquenes e musgos de um verde fabuloso, contrastavam com os castanhos típicos das árvores nesta estação do ano.

Aproximadamente 19kms de percurso, sem dúvida para mim foi um dos caminhos mais extenuantes, não pelo desnível do terreno nem pelos km mas pela fúria da natureza. Sabendo de antemão que o Albergue tinha poucos lugares, corríamos o risco de não arranjar lugar para pernoitar. A motivação aliada ao esforço e descarga intensa de adrenalina apoderaram-se do nosso grupo mal avistamos a Vila de Castro de Dozón. O que fez com que parte do grupo se desmembrasse chegando mesmo a passar ao lado do Albergue sem o reconhecer J… As últimas “Flechas” não estavam bem marcadas, o que pelos vistos é uma constante quando se entra em cidades e vilas maiores, levando a percorrer mais uns metros do que era esperado…

Finalmente, chegámos ao destino. No cimo de um pequeno monte, o albergue provisório, constituído por vários contentores, ficou lotado com a nossa chegada. Desta vez, a prioridade era o material: completamente enlameado e encharcado tinha de voltar a estar operacional no dia seguinte. O contentor onde dormi foi partilhado com o grupo de “adolescentes” de Orense e seu pai. Muito simpáticos deixaram-nos secar algumas peças de roupa em frente ao ar condicionado, o espírito de entreajuda e camaradagem é bem evidente entre todos. A sensação de bem-estar e ambiente quente do nosso contentor contrastava com o choque térmico do contentor do quarto de banho. Situação provisória explicou-nos a “Estalageira”, no entanto, já é provisória há alguns anos, espero que entretanto mude… pois foi de longe dos piores albergues que encontrámos no caminho.


Depois de nos acomodarmos, partimos 4 bravos em busca de um jantar quente. Peripécia difícil de se concretizar pois estava tudo fechado e o restaurante mais próximo era uns kms! Não há obstáculos para a determinação do nosso Fotógrafo e Australiano, eu e o João, incrédulos, lá nos apercebemos que íamos de boleia com um generoso habitante local, até ao repasto J… E a vinda? Pergunto, lá se resolve… respondem ?! Já de barriguinha cheia o regresso foi mais atribulado, o nosso “motorista” (desta vez previamente pago e bem pago) recrutado no café do restaurante, não primava pela exímia condução….Todos respiramos de alívio quando chegamos ao Albergue...



Completamente exausta, rendo-me a mais um dia de caminho, este diferente pela componente cultural e por isso um dos que mais gostei de fazer. Amanhã uma nova Aventura nos aguarda…

Texto by Lai
Fotos by Sight


(Continua...)


8 comentários:

  1. Fiquei cansada só de ler... :-) Magnífico.

    Também já me questionei sobre o dom que as freiras têm para as lambarices...
    Bj

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  2. Este dia foi cansativo...as pernas acusavam já a kilometragem acumulada, noites mal dormidas, mas o principal obstáculo era mesmo a Mãe Natureza.

    As freiras com as lambarices...e os frades para os licores!
    Obrigado pela sua companhia!
    Bj

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  3. Olá,

    Tem no meu blog uma entrada referente à amizade entre pessoas de diferentes países e, se quiser, um selo referente à mesma, que foi criado pensando em alguém como você, pois, ainda que não o conheça pessoalmente, considero-o meu amigo também.

    Um beijo e boa semana.

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  4. Hola,

    Estoy feliz de poder pasar por tu blog par decirte que tienes en el mío una entrada referida a la amistad entre personas de diferentes países y, si quieres, un sello referido a la misma que, fue hecho pensado en alguien como tú, pues si bien no te conozco en persona te considero mi amigo también.

    Saludos,

    Sergio

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  5. OLÁ
    estou a adorar ler a sua história verídica dos Caminhos que tem feito e...ao ler:
    Conhecemos um casal já bastante idoso que veio de Barcelona, muito simpático e atencioso...Um belga aparece vindo de Madrid, veio libertar-se do stress da faculdade...Um grupo bastante animado de Ourense constituído por três filhos e o pai Avelino, assim como uma amiga e um primo de Vigo...
    FABULOSO o contacto com tantas pessoas de todos os cantos do Mundo. Acredite que eu iria adorar um dia poder participar também.

    Beijinho.

    Nota: deve estar para breve o seu aniversário...gostaria de lhe dar os Parabéns!

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  6. Olá

    Estou a "viver" cada etapa!
    Muito obrigado por partilhar.

    Um abraço

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  7. Amigos,
    O propósito do convite à Lai, amiga que integrou este grupo de peregrinos, era trazer até os leitores do SightXperience, a vivência desta mística aventura, aos olhos de quem sonhou e ousou a sua realização pela primeira vez.

    Creio que este objectivo é plenamente conseguido, com estes relatos que nos deixam sem fôlego!

    Obrigado pela vossa companhia!
    Abraço

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