sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Diário de um Caminho - Dia 7



Laxe (Bendoiro) – Outeiro (Vedra)

Penúltimo dia antes da grande “Chegada” a Santiago.
Não tenho memória de noite passada com tanto frio… Dou por mim, de madrugada a tactear entre beliches em busca de algo quente para vestir. Alguém se “esqueceu” de ligar o aquecimento nocturno e o Albergue de Laxe que tanto me encantou à chegada pela sua simpatia e dimensão, rapidamente passou a ser um entrave, para um sono contínuo e necessário…
Alvorada!!! Bem cedinho como habitualmente, usamos as indispensáveis lanternas, pois para nossa surpresa também não tínhamos luz! … Mais uma aventura J
O cansaço de tantos dias no Caminho, apodera-se dos nosso rostos e a foto da praxe é tirada a correr, pois já se faz tarde. Temos pela frente o nosso maior desafio, o percurso Laxe - Outeiro, um dos maiores da nossa jornada, aproximadamente 32 km de extensão. A nossa condição física e humana começa a ser testada mas ninguém desiste. Bravos!!!. Desde rostos que contemplam o horizonte em busca de algo reconfortante, por entre fortes chuvas e ventos, e semblantes sisudos que tentam mascarar e minimizar as enumeras bolhas e dores musculares, acumuladas ao longo destes dias de caminhada, um a um metemo-nos a Caminho.
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O ambiente mágico das névoas matinais contrastam com o orvalho presente na vegetação, são uma constante e um momento único que tanto aprecio, reconforta a alma e dá coragem de seguir. Entre chuvas e ténues abertas, os nossos ponchos são mais uma vez testados. Vislumbramos aqui e ali alguns restos do que outrora foram ponchos, desta vez a intempérie levou a melhor. O trajecto desta jornada é um misto de estradas de aldeia e muito asfalto. Infelizmente para mim, que elegi as botas como fiel amigo…
Os cavaleiros que pernoitaram em Laxe dão o ar de sua graça por entre o dilúvio. Cobrem mais rápido o trilho do que nós, no entanto nem para eles é fácil. A força animal aliada à mestria e inteligência humana ditou que tal simbiose fosse ancestral, e provavelmente nos primórdios da Peregrinação a Santiago, fossem muito utilizados como meio de transporte. Cavalos e cavaleiros resvalam nas estradas de alcatrão todo o cuidado é pouco, um dia quem sabe não faça parte do caminho a cavalo. Deve ser uma experiência única! Talvez um dia…
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O grupo começa a fragmentar-se, eu não sou excepção, ora ando sozinha contemplativa, ora acompanhada. Cada um tem o seu ritmo e o mais importante é chegarmos todos bem ao destino. É um suplício para mim sempre que vejo alcatrão, logo procuro percurso alternativo de terra. O dia parece que nunca mais acaba, já não olho para o horizonte, semblante carregado e cansada olho para o chão e mentalizo-me que falta pouco… Enquanto uns descansam outros preferem continuar para não quebrar o ritmo, os músculos arrefecem e custa depois arrancar, sigo no meu compasso. Falta pouco… “é já ali, só faltam dez km”… teimo em dizer ao nosso peregrino “caçula”, ânimo, ânimo !!!
Por entre obras de uma nova auto-estrada e desvios, o nosso grupo separa-se inadvertidamente, alguns, seguem percursos diferentes, bendito GPS e telemóvel! Todos nos reencontramos finalmente no fim da Ponte do Ulla, na localidade com o mesmo nome.
Agora e segundo o GPS é sempre a subir, “falta pouco” diz-nos o nosso fotografo e Outeiro já se avista. Descanso, banho, cama refeição… tão enganada estava…
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A ultima subida parece um eternidade… reunimos resquícios de forças sobre naturais e galgamos monte acima. A descarga de adrenalina apoderou-se dos nossos corpos e na esperança de ainda haver lugar no Albergue lá conseguimos chegar ao nosso destino… Más notícias, lotação esgotada, está cheio, não temos onde dormir...e as nuvens a ameaçarem uma noite chuvosa!
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O pânico instala-se em alguns de nós, a incerteza, a insegurança e o desespero… um teste à nossa condição humana. Resta a esperança de tudo se resolver e arranjar onde pernoitar… Compasso de espera e de desespero. Finalmente a responsável pelo Albergue chega e “acciona o plano B”… vamos dormir num salão, na localidade 4km mais abaixo. O nosso grupo e a família do Pai Avelino de Ourense segue para baixo, com as mochilas à boleia num carro, alguns ainda conseguiram energia para correr monte abaixo, cansados e aliviados lá chegamos ao pavilhão da Protecção Civil.
Entre estrados de camas, mesas, cadeiras, “entulho”, enfeites festivos e ratos, cada um de nos fez um ninho improvisado. Atendo as enumeras fezes de ratos, achei por bem juntar dois bancos de igreja e dormir no “1ª andar”… outros colocam as suas colconhetes sobre os estrados. Alguns ainda tiveram duche de água quente, deixo-me ficar para ultimo… logo só me resta água fria! … Será pelo menos um alívio para os músculos fatigados J.
Portugueses e Galegos, jantamos todos num restaurante “perto”, a noite não está para grandes conversas…. Todos estamos exaustos, todos atingimos um “limite” qualquer. Compartilho com as minhas vizinhas espanholas, algumas dicas para curar bolhas nos pés e "Voltaren" gel para as costas doridas, por causa da mochila. Um dos momentos altos da noite foi a leitura do poema “ A caixa do Amor”, lida com simpatia e sotaque galego pelo Pai Avelino. Palavras que me trazem lembranças de tempos passados, palavras que reconfortam, dão esperança e animo para o futuro. Cada um recolhe-se em silêncio com melhor pode. A minha colchonete foi finalmente estreada, o medo de cair abaixo do banco era uma constante, mas o cansaço vence e finalmente adormeço.
Amanhã é o grande Dia…
Texto by Lai
Fotos by Sight
(Continua...)