sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O livro do Outono


Um livro de poemas
é o outono morto: 
os versos são as folhas 
negras em terras brancas, 

e a voz que os lê 
é o sopro do vento 
que lhes mete nos peitos 
— entranháveis distâncias. — 

O poeta é uma árvore 
com frutos de tristeza 
e com folhas murchadas
de chorar o que ama. 

O poeta é o médium 
da Natureza-mãe 
que explica sua grandeza 
por meio das palavras. 

O poeta compreende 
todo o incompreensível, 
e as coisas que se odeiam, 
ele, amigas as chama.

Sabe ele que as veredas 
são todas impossíveis 
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Garcia Lorca in "Este é o Prólogo" (excerto)





domingo, 7 de novembro de 2010

Diário de um Caminho: Dia 8 o último dia…


Outeiro (Vedra) - Santiago de Compostela
Último dia…

Finalmente o tão aguardado dia chega, Santiago tão próximo, última etapa do nosso Caminho… Tantas adversidades ultrapassadas e a última noite não foi excepção.
Apesar do alegre convívio entre dois grupos distintos, portugueses e espanhóis, a última noite para mim foi um desespero; o frio constante e o banco da igreja demasiado estreito e duro para se conseguir descansar, depois de uma etapa de 32 km. Devo ter dormido 2 a 3 horas, se tanto. Para além do cansaço acumulado, as dores de costas começaram a aparecer, nada que a motivação desta ser a última etapa e uma boa dose de Voltaren, não dessem conta do recado!
Bolhas protegidas, pés ligados, mochilas às costas, mazelas à parte… cá vamos nós…
O pequeno-almoço foi mais um momento de partilha. Reunimos tudo o que tinha sobrado e o estômago lá foi enganado…. Só queria aquecer de alguma maneira e um café com “leche mui calientito” era uma miragem!...

A partida foi feita em silêncio, não me recordo de termos tirado a foto da praxe. O intenso convívio de 24 horas associado a algum nervosismo ditaram pequenas clivagens no seio do nosso grupo. O ambiente pesado, combinava com a madrugada, pois o sol tardava em aparecer. Os primeiros kms foram quase sempre em alcatrão, o que acontece normalmente quando uma cidade está perto, assim como o frenesim das pessoas nas ruas. Muito cedo, entramos num café “beira de estrada”, onde mais uma vez os galegos demonstraram a sua hospitalidade para com os peregrinos, ofereceram bolos e biscoitos para acompanhar as bebidas quentes, um gesto muito simpático e de louvar. Até uma brigada de trânsito, que também tomava o pequeno-almoço, se mostrou jovial e simpática para connosco. Penso que antigamente deveria ser mais frequente este tipo de hospitalidade sem pedir nada em troca, no entanto constato cada vez mais que os Caminhos de Santiago começam a ser uma importante fonte de turismo na Galiza.

Mochilas às costas, mais uma vez e lá partimos para a intempérie, uma vez que a chuva não nos dá tréguas. Esperam-nos uns longos 13 km, cinzentos e cheios de neblinas, o cansaço acumulado ao longo de uma semana apodera-se lentamente de mim. Maldito alcatrão!

Deixo-me ficar para trás, faço a minha retrospectiva desta grande lição de Vida. Conheci pessoas extraordinárias, quer pela sua sabedoria, quer pelo humor, compreendi a palavra partilha, a força do acreditar, a união, a desilusão, o desespero, a alegria e talvez o mais importante o Silêncio.
O “grande silêncio” associado a tão belas paisagens nos vários momentos do Caminho, reflecte-se em agora em mim num estado de espírito tão essencial e tão necessário como a azáfama do nosso quotidiano.

O último dia, foi para mim, sem dúvida o mais duro; as dores nas pontas dos dedos dos pés a baterem contra a bota, durante as descidas em alcatrão, o ambiente carregado e o constante mau tempo, fez com que o percurso, apesar de curto, fosse penoso e custasse tanto a percorrer. Sabia que estava perto do nosso destino, as zonas industriais não enganam. Aos poucos começamos a cruzar-nos com outros peregrinos que vinham de outros destinos. Um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo apodera-se de mim, está a acabar…

A nossa vida paralela e rotineira está à nossa espera, missão cumprida, que alegria: Santiago à vista!!! Um dos momentos que me marcaram, por entre nuvens carregadas, foi vislumbrar as torres da Catedral de Santiago, como se de uma visão se tratasse. Toda a dor é esquecida, todo o desconforto posto de lado, está quase!! Que orgulho, chegamos todos juntos a Santiago, uma cidade que guardaremos para sempre no nosso coração, tantas vezes visitada mas agora, também compreendida. O nosso momento, o meu momento, foi uma conquista algo inesquecível, uma primeira vez.

De sorriso rasgado e com palavras de ânimo de outros peregrinos, lá entramos nas movimentadas ruas de Santiago, o destino final o km 0. Situado no centro da praça Obradoiro, mesmo em frente à Catedral de Santiago. Calcorrear aquelas ruas medievais, tantas vezes a porta de chegada de peregrinos ao longo de séculos, fez-me sentir pequenina e deixo-me envolver por todo o frenesim. No meio dos turistas que nos olham espantados, entre os companheiros de viagem a cumplicidade é muita. Avisto a Catedral com toda a sua plenitude, gelo por uns instantes antes de rejubilar de alegria. Misturamo-nos nessa continua descarga de adrenalina, que é a chegada dos peregrinos à praça. O momento que tanto aguardávamos ali estava ele! Sereno e ao mesmo rejubilante!

Sento-me no chão no meio da praça, encostada à minha companheira de viagem, a mochila, que tantas vezes me pareceu pesada e de repente torna-se tão leve que não me consigo separar dela! Custa-me tirá-la das costas, já faz parte de mim e sem ela sinto-me incompleta.
Contemplo de frente a Catedral e por momentos ignoro toda a gente à minha volta. Estou sozinha, guardo esse momento inexplicável só para mim, e que sem dúvida me vai acompanhar pela minha vida fora; uma lição de vida, e de crescimento pessoal. Não consigo evitar as lágrimas (espero que ninguém se aperceba), agora entendo o Caminho de Santiago, não é mais do que uma metáfora da nossa Vida!

Caminhos e decisões que tomamos seguindo este ou aquele ensinamento, aqui representados pelas vieiras e setas. Caminhos difíceis, pequenas conquistas, que não são mais do que as várias etapas na nossa vida, boas escolhas, más escolhas, privações, choro, alegria, amor. Pessoas que entram e saem da nossa vida são representadas por quem nos cruzamos ao longo do caminho, e por fim, após percorrer o Labirinto da nossa Vida, o Destino Final, seja ele religioso, pessoal, místico ou simples prazer. O nosso destino pode estar traçado mas as nossas escolhas que nos levam a enveredar por determinados caminhos em detrimento de outros fazem com que a nossa Vida seja tão única.

Vou voltar, com toda a certeza, tenho tantas perguntas sem resposta, tantas pessoas por conhecer, tantos trilhos para calcorrear e tanta curiosidade de saber o que está mais além.
Sim regressarei, um dia….

Texto by Lai
Fotos by Sight

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Diário de um Caminho - Dia 7



Laxe (Bendoiro) – Outeiro (Vedra)

Penúltimo dia antes da grande “Chegada” a Santiago.
Não tenho memória de noite passada com tanto frio… Dou por mim, de madrugada a tactear entre beliches em busca de algo quente para vestir. Alguém se “esqueceu” de ligar o aquecimento nocturno e o Albergue de Laxe que tanto me encantou à chegada pela sua simpatia e dimensão, rapidamente passou a ser um entrave, para um sono contínuo e necessário…
Alvorada!!! Bem cedinho como habitualmente, usamos as indispensáveis lanternas, pois para nossa surpresa também não tínhamos luz! … Mais uma aventura J
O cansaço de tantos dias no Caminho, apodera-se dos nosso rostos e a foto da praxe é tirada a correr, pois já se faz tarde. Temos pela frente o nosso maior desafio, o percurso Laxe - Outeiro, um dos maiores da nossa jornada, aproximadamente 32 km de extensão. A nossa condição física e humana começa a ser testada mas ninguém desiste. Bravos!!!. Desde rostos que contemplam o horizonte em busca de algo reconfortante, por entre fortes chuvas e ventos, e semblantes sisudos que tentam mascarar e minimizar as enumeras bolhas e dores musculares, acumuladas ao longo destes dias de caminhada, um a um metemo-nos a Caminho.
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O ambiente mágico das névoas matinais contrastam com o orvalho presente na vegetação, são uma constante e um momento único que tanto aprecio, reconforta a alma e dá coragem de seguir. Entre chuvas e ténues abertas, os nossos ponchos são mais uma vez testados. Vislumbramos aqui e ali alguns restos do que outrora foram ponchos, desta vez a intempérie levou a melhor. O trajecto desta jornada é um misto de estradas de aldeia e muito asfalto. Infelizmente para mim, que elegi as botas como fiel amigo…
Os cavaleiros que pernoitaram em Laxe dão o ar de sua graça por entre o dilúvio. Cobrem mais rápido o trilho do que nós, no entanto nem para eles é fácil. A força animal aliada à mestria e inteligência humana ditou que tal simbiose fosse ancestral, e provavelmente nos primórdios da Peregrinação a Santiago, fossem muito utilizados como meio de transporte. Cavalos e cavaleiros resvalam nas estradas de alcatrão todo o cuidado é pouco, um dia quem sabe não faça parte do caminho a cavalo. Deve ser uma experiência única! Talvez um dia…
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O grupo começa a fragmentar-se, eu não sou excepção, ora ando sozinha contemplativa, ora acompanhada. Cada um tem o seu ritmo e o mais importante é chegarmos todos bem ao destino. É um suplício para mim sempre que vejo alcatrão, logo procuro percurso alternativo de terra. O dia parece que nunca mais acaba, já não olho para o horizonte, semblante carregado e cansada olho para o chão e mentalizo-me que falta pouco… Enquanto uns descansam outros preferem continuar para não quebrar o ritmo, os músculos arrefecem e custa depois arrancar, sigo no meu compasso. Falta pouco… “é já ali, só faltam dez km”… teimo em dizer ao nosso peregrino “caçula”, ânimo, ânimo !!!
Por entre obras de uma nova auto-estrada e desvios, o nosso grupo separa-se inadvertidamente, alguns, seguem percursos diferentes, bendito GPS e telemóvel! Todos nos reencontramos finalmente no fim da Ponte do Ulla, na localidade com o mesmo nome.
Agora e segundo o GPS é sempre a subir, “falta pouco” diz-nos o nosso fotografo e Outeiro já se avista. Descanso, banho, cama refeição… tão enganada estava…
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A ultima subida parece um eternidade… reunimos resquícios de forças sobre naturais e galgamos monte acima. A descarga de adrenalina apoderou-se dos nossos corpos e na esperança de ainda haver lugar no Albergue lá conseguimos chegar ao nosso destino… Más notícias, lotação esgotada, está cheio, não temos onde dormir...e as nuvens a ameaçarem uma noite chuvosa!
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O pânico instala-se em alguns de nós, a incerteza, a insegurança e o desespero… um teste à nossa condição humana. Resta a esperança de tudo se resolver e arranjar onde pernoitar… Compasso de espera e de desespero. Finalmente a responsável pelo Albergue chega e “acciona o plano B”… vamos dormir num salão, na localidade 4km mais abaixo. O nosso grupo e a família do Pai Avelino de Ourense segue para baixo, com as mochilas à boleia num carro, alguns ainda conseguiram energia para correr monte abaixo, cansados e aliviados lá chegamos ao pavilhão da Protecção Civil.
Entre estrados de camas, mesas, cadeiras, “entulho”, enfeites festivos e ratos, cada um de nos fez um ninho improvisado. Atendo as enumeras fezes de ratos, achei por bem juntar dois bancos de igreja e dormir no “1ª andar”… outros colocam as suas colconhetes sobre os estrados. Alguns ainda tiveram duche de água quente, deixo-me ficar para ultimo… logo só me resta água fria! … Será pelo menos um alívio para os músculos fatigados J.
Portugueses e Galegos, jantamos todos num restaurante “perto”, a noite não está para grandes conversas…. Todos estamos exaustos, todos atingimos um “limite” qualquer. Compartilho com as minhas vizinhas espanholas, algumas dicas para curar bolhas nos pés e "Voltaren" gel para as costas doridas, por causa da mochila. Um dos momentos altos da noite foi a leitura do poema “ A caixa do Amor”, lida com simpatia e sotaque galego pelo Pai Avelino. Palavras que me trazem lembranças de tempos passados, palavras que reconfortam, dão esperança e animo para o futuro. Cada um recolhe-se em silêncio com melhor pode. A minha colchonete foi finalmente estreada, o medo de cair abaixo do banco era uma constante, mas o cansaço vence e finalmente adormeço.
Amanhã é o grande Dia…
Texto by Lai
Fotos by Sight
(Continua...)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Diário de um Caminho - Dia 6


Dia 6 – Castro de Dozon – Laxe (Bendoiro)
Alvorada!!! Apesar da escuridão da noite lá fora o contradizer. Já nem olho para as horas. Seis, sete? De pouco interessa, o primeiro madrugador já saltou da cama e todos nós obedientemente vamos atrás. Os peregrinos ciclistas resmungam entre dentes e cobrem os olhos para não despertar. Saem mais tarde e provavelmente terminam já este dia em Santiago, pois conseguem cobrir mais terreno em rodas do que nós em botas. 
A noite foi bem dormida, embora tivesse custado a adormecer, ao barulho constante do ar condicionado, mas pelo menos dormimos quentinhos, pois o contentor improvisado era pequeno e rapidamente aqueceu! Sentada no meu beliche, dou por mim a contemplar a algazarra à minha volta. Passa-se a vistoria à roupa, para ver o que secou durante a noite. Alguns dos adolescentes de Ourense mantêm os pijamas e vestem a roupa por cima… é a lei da sobrevivência, lá fora está um frio de rachar! No início até havia um certo pudor, agora é o desenrascar, e o mais rápido possível, há malta que se passeia de roupa interior. Afinal é a mesma coisa do que se tivermos na praia, apenas os tecidos é que diferem. Sigo o exemplo!
Depois de um pequeno-almoço ultra rápido, constato que sou das últimas pessoas a estarem prontas para partir, perdi-me nas minhas divagações, para variar… O dia de hoje uma incógnita, sabemos o local de partida Castro de Dozon mas não o de chegada Laxe ou Lallin, vai depender das ocupações dos albergues e da condição física em que nos encontramos. Começam a aparecer no nosso grupo as dores musculares e as enumeras bolhas, mas não há desistências apenas um sofrimento interior e uma grande vontade de chegar a Santiago. E eu? Impecável, benditas horas sofridas no ginásio e trilhos pelos montes.
A manhã avizinha-se fria e muito chuvosa, a mãe natureza não nos dá tréguas. O inimigo do percurso o asfalto e o terreno completamente desprotegido dos ventos, fazem com que os nosso ponchos sejam testados até mais não puderem de tão encharcados. Vamos em silêncio em fila indiana, a ver passar os carros por nós, sinto-me uma peregrina a caminho de Fátima. Vamos passando por outros peregrinos e no meio de tanta intempérie e depois de caminharmos cerca de 8 Km, encontramos um bar com motivos equestres e lá nos refugiamos para tomar algo quente e recuperar energias. O Sr. José, um simpático espanhol que explorava o local num ápice arranjou um “Bocadillos” quentes e uns cafés com leche, cãnhas e Aquarius para os mais fraquinhos! Ainda lhe perguntei se não havia nenhum cavalo disponível no estábulo para me levar até Santiago, sim porque há peregrinos a cavalo, ele muito orgulhoso disse, claro é só escolher! Ficará para uma próxima, tenho de ter umas aulas de equitação primeiro
Depois da paragem para o almoço, o dia tornou-se menos austero, S. Pedro dá-nos finalmente algumas tréguas e rapidamente chegamos a Laxe. Qual o nosso espanto ao constatar que chegamos ao mesmo tempo que a Carmencita, que caminhava muito mais atrás de nós… não foi avistada por mais nenhum peregrino, excepto quando desfrutava de um livro no meio do monte, e chegou primeiro do que toda a gente!! Pois um certo carro vassoura (o marido coitado!) que lá cedia aos inúmeros caprichos desta senhora. 
O albergue de Laxe (Bendoiro) foi, sem dúvida um dos melhores arquitectados que encontramos. Tinha voluntários que nos mostravam os cantos à casa e explicavam as regras. Alojamento multifacetado, tanto funcionava como albergue de peregrinos como centro de dia para a população e ATL para as crianças. 
A etapa foi pequena, cerca de 12 km, optamos por ficar em Laxe pois o próximo Albergue só tinha oito lugares e já estava completamente lotado. Assim a tarde foi para descansar e tratar das mazelas, momento sempre de convívio e troca de contactos entre peregrinos.
Os nossos “batedores" partiram na sua habitual demanda de abastecimentos. As compras foram feitas na mercearia mais próxima…numa aldeia vizinha que ficava “já ali”…. Mais uma vez a simpatia destas gentes para com os peregrinos: depois de finalmente encontrado o padeiro local, deu-se a decepção com a fornada esgotada… mas de imediato colmatada com a singela e insistente oferta da metade de “broa” que este homem tinha reservado para o seu consumo!.. Gestos marcantes que alimentam a mística do Caminho!
Em clima de grande cumplicidade e alegria o jantar foi preparado. Massa e costeletas de borrego, até eu cozinhei e comi, e mais a mais, detesto borrego… era o que havia, e lá foi!!
Um dos pontos altos do dia foi quando nos recolhemos para desfrutarmos de mais um fabuloso texto preparado pelo nosso Fotógrafo. Uma das manas nipónicas foi convidada a ler o poema “Silêncio”, pois como é guia turística fala fluentemente enumeras línguas entre elas o português. Foi um daqueles momentos de partilha e comunhão entre todos nós que ficam nas boas memórias do Caminho de Santiago. 
Chegam os cavaleiros, os cavalos lá fora são alimentados e começam a espoliar-se de felicidade, merecido repouso, nem para eles é fácil.
Amanhã a mais longa das etapas, cerca de 32 km nos esperam, agora entregamo-nos ao descanso e ao silêncio…
Texto by Lai
Fotos by SightXperience
(continua…)

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Diário de um Caminho - Dia 5





Dia 5: Cea – Castro de Dozón

Um dia mais no nosso Caminho, ainda não amanheceu e já estamos prontos para partir de novo. Começa a ser uma constante madrugarmos com a noite ainda a despedir-se, um recomeçar. Dou por mim a ritualizar a cerimónia da partida, como se de um piloto automático se tratasse, só acordo com o ar frio que emana lá de fora... Mais um dia árduo pela frente, a chuva não deu tréguas durante a noite, tudo se encontra alagado.
Um a um saímos do Albergue de Cea, em silêncio para não acordar os poucos peregrinos que não resistiram ao cansaço e às dores musculares já acumulados de anteriores jornadas.

O Sr. Manolo com ar muito ensonado, lá abre as grades de uma das tabernas da Vila, sendo o único estabelecimento aberto, rapidamente se enche com os peregrinos ávidos por um café matinal. Sem mãos a medir, começa a chamar os familiares do andar de cima para virem ajudar no pequeno-almoço; aqui os peregrinos são sinal de lucro, principalmente nos dias difíceis que atravessamos. O calor e as primeiras risadas matinais contrastam com a chuva e a escuridão que se estende lá fora. Guardo na memória as últimas palavras proferidas pelo “mestre taberneiro” na despedida: “Bom Camiño e que viva o suficiente para vos voltar a reencontrar numa outra viagem…”

O Caminho é retomado em Cea, o destino Castro de Dozón, mas vamos fazer um desvio, mais do que obrigatório, para visitar o Mosteiro de Santa Maria de Oseira. O início do percurso é marcado sensivelmente por asfalto, tornando-se penoso devido à intensidade da chuva e a um fustigar contínuo do vento. Entretanto, amanhece e nem demos conta, só olho para o horizonte em busca do bendito Mosteiro que para além de ser um grandioso monumento vai-nos dar guarida e um sítio seco para recuperar as energias. Ei-lo!!! Após uma subida, contemplamos, como se de conquistadores nos tratássemos, o magnífico edifício ainda envolto na neblina matinal. Que majestosa visão. Muitos peregrinos antes de nós devem ter sentido o mesmo, um porto de abrigo, reina entre nós um silêncio de contemplação.



Mosteiro com tradição secular de acolhimento de  peregrinos, ainda hoje (com marcação) prévia pode-se pernoitar neste abrigo histórico, mas com um senão: não há água quente!!! Só para os mais audazes… Oseira é um mosteiro da Ordem de Cister que tem como destaque a sua igreja do século XII, um exemplo típico do romantismo galego com influência da Catedral de Santiago, ladeado por três grandes claustros que foram adicionados nos séculos posteriores.
Ao aproximarmo-nos do mosteiro deparamo-nos com uma manada de vitelos que faziam o seu repasto nos jardins que circundavam o mesmo, perfeita comunhão da natureza e civilização. Foi-nos explicado mais tarde que ainda existem alguns monges que regressaram à abadia e que tal como em tempos passados, subsistem com gado e hortas por eles cultivados, claro está sem faltar as famosas bebidas espirituosas, neste caso, licores dos mais variadíssimos sabores. Porque será que os frades se dedicam aos licores e as freiras aos doces conventuais?
As visitas guiadas são realizadas de hora em hora e tem a duração aproximada de uma hora também. Apesar dos alertas prévios e constantes da nossa amiga nipónica, a roupa que levávamos era insuficiente para tanto frio, aquelas paredes e abobadas de pedra não davam tréguas, havia locais onde não passava um raio de luz solar, o frio associado às roupas molhadas da intempérie fizeram com que batesse o dente e de que maneira J! A motivação de continuar a visita veio do nosso guia, um apaixonado pela profissão, consegue-nos facilmente cativar e envolve-nos com histórias da realeza e clero, de invasões e pilhagens pelo povo e de como foi restaurado até chegar aos nossos dias; por momentos podemos recuar no tempo e viver de novo na idade média.


A hora do almoço chegou e a proximidade de uma taberna típica repleta de chouriços caseiros ao dependuro e dos inúmeros licores espirituais, ditaram que por unanimidade fosse este o local escolhido para o repasto. Brinde a nós peregrinos e à continuação de um bom Caminho, o frio rapidamente se esvaneceu devido ao teor alcoólico da especialidade local, acompanhada por um “bocadilho” de chouriço e rematado com o já famoso caldo galego. Estamos prontos para o que der e vier!!!

A chuva começou a dar-nos tréguas mas, o resultado evidente das mesmas estava à vista. Caminhos tortuosos e cheios de lama faziam com que tentássemos desvios alternativos. No início, ainda tentava poupar as botas e desviava-me, a meio já desisti e rendi-me a evidência, era sempre a andar, o material era secundário, a meta Castro de Dozón. Apesar do meu olhar se concentrar na escolha de onde colocar os pés, a beleza do caminho era estonteante. Muros naturais formados por líquenes e musgos de um verde fabuloso, contrastavam com os castanhos típicos das árvores nesta estação do ano.

Aproximadamente 19kms de percurso, sem dúvida para mim foi um dos caminhos mais extenuantes, não pelo desnível do terreno nem pelos km mas pela fúria da natureza. Sabendo de antemão que o Albergue tinha poucos lugares, corríamos o risco de não arranjar lugar para pernoitar. A motivação aliada ao esforço e descarga intensa de adrenalina apoderaram-se do nosso grupo mal avistamos a Vila de Castro de Dozón. O que fez com que parte do grupo se desmembrasse chegando mesmo a passar ao lado do Albergue sem o reconhecer J… As últimas “Flechas” não estavam bem marcadas, o que pelos vistos é uma constante quando se entra em cidades e vilas maiores, levando a percorrer mais uns metros do que era esperado…

Finalmente, chegámos ao destino. No cimo de um pequeno monte, o albergue provisório, constituído por vários contentores, ficou lotado com a nossa chegada. Desta vez, a prioridade era o material: completamente enlameado e encharcado tinha de voltar a estar operacional no dia seguinte. O contentor onde dormi foi partilhado com o grupo de “adolescentes” de Orense e seu pai. Muito simpáticos deixaram-nos secar algumas peças de roupa em frente ao ar condicionado, o espírito de entreajuda e camaradagem é bem evidente entre todos. A sensação de bem-estar e ambiente quente do nosso contentor contrastava com o choque térmico do contentor do quarto de banho. Situação provisória explicou-nos a “Estalageira”, no entanto, já é provisória há alguns anos, espero que entretanto mude… pois foi de longe dos piores albergues que encontrámos no caminho.


Depois de nos acomodarmos, partimos 4 bravos em busca de um jantar quente. Peripécia difícil de se concretizar pois estava tudo fechado e o restaurante mais próximo era uns kms! Não há obstáculos para a determinação do nosso Fotógrafo e Australiano, eu e o João, incrédulos, lá nos apercebemos que íamos de boleia com um generoso habitante local, até ao repasto J… E a vinda? Pergunto, lá se resolve… respondem ?! Já de barriguinha cheia o regresso foi mais atribulado, o nosso “motorista” (desta vez previamente pago e bem pago) recrutado no café do restaurante, não primava pela exímia condução….Todos respiramos de alívio quando chegamos ao Albergue...



Completamente exausta, rendo-me a mais um dia de caminho, este diferente pela componente cultural e por isso um dos que mais gostei de fazer. Amanhã uma nova Aventura nos aguarda…

Texto by Lai
Fotos by Sight


(Continua...)


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Diário de um Caminho - Dia 4

Dia 4:  Ourense – Cea

Serão seis, sete horas da manhã? De nada interessa, aqui as horas e o tempo são relativos. Ao primeiro alvoroço, todos os peregrinos despertam no antigo Mosteiro de Ourense. A mochila já foi arrumada na véspera, não há tempo a perder, o Caminho espera-nos, 22 km aproximadamente para chegar ao nosso destino Cea.


Lá fora não se avista vivalma apenas peregrinos atarefados, “Bon Camiño” até Cea ou
encontramo-nos em Santiago. Ainda não amanheceu, o frio e a chuva rapidamente se fazem sentir, está na altura de regressar ao uso dos ponchos. A cidade ainda dorme, alguns cafés começam a abrir, os jornais e o pão são entregues. Após um pequeno-almoço, no café mais próximo, a cidade lentamente desperta.


Adeus Ourense, mas antes um ultimo contemplar para a majestosa Catedral. Vamos em busca das Fontes de las Burgas, uma das nascentes de água quente situadas no coração da cidade. Encontramos uma habitante local que muito amavelmente nos explica, que é tradição antes de começar a trabalhar, passar pela fonte e inspirar literalmente a água, a 67ºC, pelo nariz e limpar os ouvidos, garantindo assim não só a limpeza (não há bicharoco que resista a 67ºC J ), como também purificação e saúde para o novo dia que se avizinha. Escusado será dizer que… um a um lá imitamos o ritual ancestral, ainda pensei, há quem acorde com um balde de água fria, mas garanto-vos que após este escaldão qualquer pessoa fica pronta para o que der e vier!!!

Atravessamos a ponte romana datada do Século I e reconstruída no século XII que une as duas margens do rio Minho, dou por mim a pensar que fazemos parte da história contada por aqueles pilares, quantos milhares, milhões de peregrinos não deverão ter passado por ali na sua viagem até Santiago… e eu fiz parte!! Um daqueles momentos difíceis de relatar … Com grande satisfação despedimo-nos de Ourense (espero voltar ainda este ano com a família para desfrutar de tão bela cidade e termas).
Com a cidade a desaparecer nas nossas costas, os primeiros raios de sol tímidos começam a espreitar, atravessamos pequenas povoações de traços nitidamente medievais com as suas praças e pelourinhos. Entramos no que se chama o Camiño Real, na minha cabeça fervilha enumeras respostas ao porque deste nome, talvez em tempos antigos alguma Corte Real atravessou este caminho? Será que foi construído a mando de algum Rei ou quiçá atravessava propriedade real. A resposta não a sei bem, mas creio que é a designação da antiga rede nacional de estradas, mas o nome foi ficando de geração em geração chegando aos nossos dias.

Havia dois tipos de peregrinos na idade média, o tradicional que percorria a pé ou a cavalo os caminhos tradicionais em busca de um perdão na terra do santo apóstolo, o peregrino mais abastado que pagava para fazerem a peregrinação por ele ou então o peregrino benfeitor que ajudava na construção dos caminhos e albergues. Não só repleto de história e de imensa beleza este caminho real é sem dúvida um caminho árduo de intensas subidas íngremes em pedra irregular. A chuva recomeça a cair, mas a nossa temperatura corporal aumenta devido ao esforço físico e com ele as reservas de água começam a escassear e as paragens de descanso tornam-se numa constante. 
A simpatia dos espanhóis é notada, falta pouco!! Querem água? Bom Camiño! As nossas garrafas voltam a ficar cheias à custa da mangueirada de uma habitante local.
Entramos numa frondosa floresta, repleta de árvores centenárias, musgos e líquenes, alguns terrenos alagados fazendo lembrar pântanos. Com este cenário a nossa estrada vira um campo de batalha, lama por todos os lados que muito dificilmente se consegue ultrapassar sem ficar com o “barro” até as orelhas. As minhas botas não escapam, após infrutíferas tentativas de desvios alternativos rendo-me à evidência e sigo em frente. O caminho também é utilizado pelo gado bovino, que de manhã bem cedo, sai das vacarias da aldeia e vai alimentar-se nos campos alagados e verdejantes. Dupla escorrega, lama ou dejectos qual deles escolher?? J

Passando pela ponte medieval de Sobreira, entramos no Conselho de Cea, que no século XII pertencia ao Mosteiro de Oseira que mais tarde falarei. Exaustos, com fome, encharcados e imundos… parte do grupo chega primeiro ao destino - San Cristóvão de Cea, muito célebre pelo seu pão e pelo conjunto de casas tradicionais, fornos comunitários, alpendres e espigueiros. O nosso Albergue, casa rústica de aldeia tão bem restaurada, foi alcançado com algum turbilhão! Lição apreendida quem chega a frente não pode reservar os lugares para quem esta mais para trás, cada um por si…
Enquanto uns se refrescam e descansam, eu, o Fotografo e o Australiano resolvemos partir em busca de alimento para a alcateia. Má sorte, chegamos à hora da “Siesta”, tarde de mais para almoçar, cedo demais para jantar. Por um acaso ou destino entramos numa padaria para provar o tão afamado pão, quando uma senhora gentilmente diz que cozinhará para nós! Sem duvida uma das melhores refeições do Caminho…
Após uma tentativa de banho, ora água gelada ora a escaldar, os nossos dois heróis regressam com o manjar, após um take away algo chuvoso. A Família reúne-se em volta da mesa para partilhar a refeição… nem deu tempo para a reportagem fotográfica. Caldo galego acompanhado pelo Pão de Cea, pão tipo Sêmea de mistura cozinhado em forno de lenha, é rapidamente reduzido a migalhas. “Paella de carne” o prato principal e “Postre”: Arroz com “leche”, não esquecendo o vinho Rioja. Jantar tipicamente espanhol multi regional. O convívio e a galhofa são uma constante que começa a contagiar as mesas vizinhas.

Conhecemos um casal já bastante idoso que veio de Barcelona, muito simpático e atencioso, de um espírito de sacrifício surreal como podemos constatar nos dias seguintes. Um belga aparece vindo de Madrid, veio libertar-se do stress da faculdade não fazendo ideia para onde vinha, nem credencial tinha e sem isso não pode usufruir da estadia do Albergue, á socapa lá se aninha num beliche, amanha terá que resolver o assunto, não o voltamos a encontrar. Um grupo bastante animado de Ourense constituído por três filhos e o pai Avelino, assim como uma amiga e um primo de Vigo que logo se apresentou, irão ser os nossos companheiros de viagem mais para a frente.

As mazelas começam a aparecer, bolhas de tamanho de ovos de codornizes, fricção por atrito e dores musculares, e eu??  Nada J , o segredo hidratar e massajar muito bem os pés com um creme gordo a noite e de amanha antes de partir proteger as zonas potenciais de atrito com “Compeed”, e muitos alongamentos musculares nas “paragens técnicas”. As idas ao monte e ginásio começam a fazer-se notar J.  O Xico é o primeiro a bater à porta do gabinete do nosso fotógrafo, agora também enfermeiro em part-time. Os primeiros fios são passados pelas bolhas e os  pés são enfaixados.

Amanhã a meta será Castro de Dozon, faremos um desvio no Caminho para o famoso Mosteiro de Oseira. “Flio, muito Flio, muito muito Flio” são as palavras da mana nipónica mais carismática e bem razão tinha ela.

O cansaço invade-nos a todos, excepto o nosso Australiano, que parece que mais uma vez não tem sono e fala pelos cotovelos, logo é calado por uma das manas que diz xiiuuuuu já são onze da noite, horário de silêncio obrigatório. Ao longe alguém ressona, a mente já não liga, o corpo é quem comanda, uma nova aventura nos aguarda…



Texto by Lai
Fotos by 
Sight
  
(continua…)

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Diário de um Caminho - Dia 3


Dia 3: Xunqueira de Ambria-Ourense

Mais uma noite mal dormida, nem os tampões para os ouvidos gentilmente cedidos pelo nosso fotografo surtiram efeito, acabando por irem parar ao fundo do meu saco cama de tanto me mexer. Que frio tive! A noite arrefeceu muito e a falta de aquecimento ligado fez-se notar bem. No entanto o nosso Australiano queixa-se mais uma vez do calor e refugia-se no sofá de uma das salas J
Mas que importa menos umas horas de sono? Um belíssimo dia nos aguarda, a meta Ourense cerca de 30 km, a nossa primeira grande travessia, que emoção toca a saltar da cama!!

Apercebo-me que todos os peregrinos de Xunqueira de Ambria tem o mesmo destino, Ourense, vai ser uma etapa comum a todos. Um grupo de 3 rapazes são os primeiros a sair, parecem saídos das “forças especiais” todos de preto, muita determinação mas pouco comunicativos, não se lhes vê qualquer sorriso. Seguem-lhes um grupo de dois miúdos de liceu, um deles coxeia severamente, penso para mim, que sacrifício que estará a fazer! Será que chega ao fim? Força amigo estamos contigo, digo.As manas nipónicas já estão prontas para partir, mas uma amiga que as acompanha tarda em sair visivelmente combalida dos joelhos. Caminhos duros de neve alguns dias, atrás ditaram que esta fosse a sua última jornada, irá para casa após chegar a Ourense. A sua desilusão e tristeza estão bem estampadas no seu rosto, que pena penso, espero que não me aconteça o mesmo. Carmencita e a sua sobrinha partem e apenas nós, Angel e Félix ainda estamos no Albergue. Está finalmente tudo pronto? Toca a partir já estamos atrasados…


O dia já amanheceu, a terra ainda não aqueceu mas não se vislumbra nuvem no horizonte, um dia de calor e sem chuva nos espera, que maravilha!!  Descanso para os nossos ponchos J
O despertar da aldeia a pouco e pouco, começam as primeiras janelas a serem abertas, o gado já está alimentado e no campo, digo até uma próxima Xunqueira de Ambria. O percurso que se avizinha é de uma grande beleza, começam os primeiros rios a aparecer, grandes vales e planaltos verdejantes, as nuvens ainda bem baixinhas conferem um cenário místico e de rara beleza no nosso caminho.
O calor começa a apertar, vamos ultrapassando alguns peregrinos e também somos facilmente ultrapassados por outros. Uns tanto aparecem como desaparecem, aqui há gato pensamos, o caminho é comum a todos mas alguém parece ter um carro vassoura J
O percurso consiste basicamente em estradões de monte, alguma lama resultado da forte orvalhada da noite anterior, cascalho e pouco asfalto, ainda bem!



Ao passar uma pequena povoação deparamo-nos com uma carrinha estacionada na berma da estrada, com um grande caldeirão de cobre cheio de polvos a cozer, paragem obrigatória!! “Pulpo a la Plancha” comido no café do outro lado da estrada. Foi-nos explicado que em determinados dias da semana vem os Pulpeiros e as pessoas levam o manjar em sacos plásticos até casa, ora ai está um bela maneira das pessoas do interior comerem peixe.

O asfalto começa a aparecer e com ele a dita civilização, polígonos industriais, fabricas, etars, carros, muita confusão e perigos. Que saudades do monte, da natureza, da paz de espírito. Penso, devemo-nos estar a aproximar de Ourense, já falta pouco é já ali…  

Depois de subir uma encosta, Ourense a vista!! Já chegamos, pensei, não podia estar mais errada... O nosso Albergue, um antigo Mosteiro completamente restaurado, situava-se no centro da cidade mais precisamente numa das enumeras colinas. Toca a andar estamos quase… quase, 2, 3, 4 km, as setas e vieiras escasseiam quando entramos na cidade. O gps do nosso Fotografo mostra-se um valente aliado e a boa vontade de quem nos cruzamos, aponta-nos finalmente o caminho a tomar.


Mosteiro à vista, só temos uma subida de cerca de 1 km a pique, que martírio, mas o resultado: um dos mais belos Albergues com que nos deparamos no nosso caminho e como uma vistas fabulosas sobre Ourense. Carmencita chega de carro com o marido, sempre a reclamar, pois pois enquanto uns andam, outros passeiam… Fazemos o registo, ainda temos lugar…

Um casal madrileno de peregrinos que já se encontra em Ourense a descansar e tratar mazelas há dois dias, gentilmente indicam-nos o que fazer na nossa tarde livre, e que tal uma ida a banhos?  disseram. Será que ouvi bem? Termas de água quente publicas produzidas por nascentes chamadas Burgas ou Pozas de água a cerca de 67º C ?  Isso é a melhor prenda que nos podiam dar depois de três dias a caminhar!!!  Pozas de Outariz aí vamos nós!


Ponto de partida para a banhoca: Plaza Mayor. Transporte: mini comboio turístico J Atulhado de peregrinos e locais, que visão engraçada, até miúdos de 12 anos facilmente nos ultrapassam nas suas bicicletas de cestinho!!  A animação foi uma constante nesta mini viagem, Francisco Iglesias deu o mote para o Ai Ai Ai Camineiro.
Nem os espanhóis conseguiram escapar a algazarra!!

A viagem foi de intensa beleza cerca de 4 km, a separar as duas margens do rio Minho, três pontes uma romana, uma de arquitectura moderna -a Ponte Milénio- com um percurso pedonal muito original e uma terceira bem perto das termas com uma característica peculiar. È costume nesta zona ou quiçá em Espanha, casais de namorados selarem o seu compromisso com um cadeado preso à ponte gravando os nomes dos amados e a data de tão marcante enlace. Engraçado como o nome Manuel estava em várias relíquias, ou era muito namoradeiro ou o nome está em moda nestas paragens…
J


O tempo estava fabuloso e com estas três piscinas de água quente termais como pano de fundo,  foi um encanto terminar em beleza esta jornada… vantagens de quem madruga!. O mergulho final, para os mais audazes consistia numa última passagem, mas agora pelas águas geladas do rio Minho. Houve corajosos entre nós, confesso que me fiquei pela água pelos joelhos e mesmo assim era como se agulhas me trespassassem as pernas.. O cansaço e a moleza apoderaram-se de mim na viagem de regresso no nosso super comboio.
Apesar de não estarmos propriamente vestidos para a ocasião ainda demos um pezinho de chinelo ao Café Latino para o último “café com leche” do dia.

O Mosteiro lá no alto, espera-nos para tão merecido descanso, completamente lotado por peregrinos e por uma equipa de volley galega, pois trata-se de um albergue misto pertencente ao Ajuntamento de Ourense. Reina algum barulho e confusão uns já dormem, outros tratam das enumeras bolhas que começam a aparecer, outros sentem-se incomodados com a algazarra e mudam-se para um Hostal mais próximo!!


Pela primeira vez não penso em nada, rendo-me ao cansaço, a minha primeira noite bem dormida do Caminho, amanhã espera-nos Cea…



Texto by Lai
Fotos by 
Sight
(continua…)




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domingo, 2 de maio de 2010

Diário de um Caminho - Dia 2


Dia 2: Vilar Barrio- Xunqueira de Ambria

Alvorada!!!! Como?? Já??? Será que não se enganaram, mas ainda é noite lá fora...
Rapidamente toda a gente se levanta como se de formigas nos tratássemos, rápido rápido sem mais tempo a perder.
Quem se mostra relutante em deixar o seu fiel amigo saco cama, é fortemente sacudido, está na hora!! Mas afinal quem dita a hora penso eu! Alguém sabiamente responde, que a sobrevivência do mais forte dita a chegada ao próximo albergue, aumentando a esperança de se conseguir 8 lugares para pernoitar.

A curiosidade e o mistério de um novo dia de Caminho rapidamente se apoderam de todos nós. A foto da praxe de saída é iniciada neste Albergue, tento escolher olheiras, cansaço e défice de horas de sono. Tarde de mais já fui apanhada pelo nosso fotografo :)

Nada como inspirar o ar frio da madrugada para combater qualquer resquício de sono. Café Café precisa-se, e de preferência com "leche" só mesmo os espanhóis a servirem estas nossas "meias de leite" que mais parecem cappucino, que maravilha.
Aproximadamente 14 km nos aguardam. Ao contrário do primeiro dia, neste o sol revela-se em toda a sua plenitude. Calcorreamos aldeias típicas com os seus belos "horreos" = espigueiros, casas quase todas restauradas mas mantendo os traços originais da sua rusticidade e ruralidade. Os habitantes sorriem á nossa passagem e dizem "Bon Caminõ" que bem que sabe ouvir isso, ainda pergunto: então e não querem vir connosco? :)

Após a descida de um monte e rodeado por montanhas ainda com neve, começamos a atravessar um vastíssimo planalto ocupado a maior parte por pastos e vacarias. Breve paragem para restabelecer energias e beber directamente da fonte, começamos a ser ultrapassados por um grande grupo de Irlandeses com mini mochilas e muita pedalada, apesar da idade já avançada. Explicam que fazem parte do Caminho em excursão e pernoitam todos os dias num hotel em Santiago, retomando o Caminho no dia seguinte. Apercebo-me que o Caminho de Santiago já se tornou um negócio turístico, que desilusão!

O piso é uma inconstante, tanto trilho de montanha como estradão de terra batida e água muita água. Começam a aparecer as primeiras lamas ou "Barro" como dizem "nuestros hermanos". Atravessamos uma belíssima floresta de Carvalhos, Azinheiras e Salgueiros refugio ainda de uma flora ancestral que teima em persistir, no entanto já se encontram alguns eucaliptos que maldade!! Ouço um pisar de folhas secas bem perto talvez dois metros, com algum espanto deparo-me com um veado fêmea que rapidamente se põem em fuga. Que maravilha!! Fecho os olhos inspiro bem fundo, ouço o vento a sacudir os ramos e fico a contemplar o momento, difícil de descrever só o sentindo.
Devemos estar perto da vila, começa a aparecer alcatrão e mais alcatrão, para mal dos meus pés. Que saudades de umas sapatilhas, mas as botas foram as eleitas para o meu Caminho. O percurso foi realizado em pouco tempo ou então estamos a tornar-nos uns atletas. Começam as primeiras mazelas a aparecer- bolhas, digo mim mesma que vou chegar ao fim sem uma única bolha será inédito!!

Na chegada ao albergue de Xunqueira de Ambria por volta da hora do almoço não se via vivalma, tudo aberto e sem ninguém para nos receber, que estranho! Depois de nos acomodarmos enquanto uns aproveitam para tomar banho e lavar roupa, outros partem em busca de um supermercado aberto. Salada de atum com arroz foi a ementa escolhida e confeccionada pelo nosso Chefe Caçula.
Xunqueira de Ambria esperava a nossa visita pós- prandial, com algum espanto encontramos no meio de um jardim comunitário não um parque infantil mas um parque com máquinas para exercitar bíceps, tricips, peitorais, abdominais e tudo o mais!! Podia pegar moda em Portugal assim poupávamos nos ginásios :) O olhar sempre atento do nosso Marinheiro Australiano captou uma casa logo a entrada da vila, um Bar com decorações marítimas. Disto tenho eu lá em casa , muito melhor e mais antigo diz, mas penso que foi tirando umas ideias para novas relíquias.

E como em Espanha sê Espanhol a bela da Siesta foi realizada, apesar da quantidade de peregrinos que não paravam de chegar! Alguns acabaram por fazer parte do nosso Caminho, Angel de Villalba, as Manas Nipónicas e um peregrino todo “pro”, o Félix. O nosso silêncio terminou, Carmencita uma "vieja rubia" hiperactiva não pára de reclamar com tudo e com todos, testa a paciência dos peregrinos acabando todos por andar a fugir dela :) Só pensamos na sua família que teve 6 dias de descanso merecido...
Após uma refeição de sopa quente e depois de muita conversa, recolhemos ás nossas camaratas colocamos as nossas "sabanas" e fazemos o ninho. Que pouca sorte penso, a camarata triplica e com ela o número de Roncadores, prometo a mim mesma que o truque é adormecer antes deles, amanhã penso, pois já se ouve a sinfonia espanhola na camarata contígua. Mais uma noite sem dormir se avizinha, um só pensamento Ourense a etapa de amanhã...



Texto by Lai
Fotos by 
Sight

(continua…)