sexta-feira, 26 de novembro de 2010

O livro do Outono


Um livro de poemas
é o outono morto: 
os versos são as folhas 
negras em terras brancas, 

e a voz que os lê 
é o sopro do vento 
que lhes mete nos peitos 
— entranháveis distâncias. — 

O poeta é uma árvore 
com frutos de tristeza 
e com folhas murchadas
de chorar o que ama. 

O poeta é o médium 
da Natureza-mãe 
que explica sua grandeza 
por meio das palavras. 

O poeta compreende 
todo o incompreensível, 
e as coisas que se odeiam, 
ele, amigas as chama.

Sabe ele que as veredas 
são todas impossíveis 
e por isso de noite
vai por elas com calma.

Garcia Lorca in "Este é o Prólogo" (excerto)





domingo, 7 de novembro de 2010

Diário de um Caminho: Dia 8 o último dia…


Outeiro (Vedra) - Santiago de Compostela
Último dia…

Finalmente o tão aguardado dia chega, Santiago tão próximo, última etapa do nosso Caminho… Tantas adversidades ultrapassadas e a última noite não foi excepção.
Apesar do alegre convívio entre dois grupos distintos, portugueses e espanhóis, a última noite para mim foi um desespero; o frio constante e o banco da igreja demasiado estreito e duro para se conseguir descansar, depois de uma etapa de 32 km. Devo ter dormido 2 a 3 horas, se tanto. Para além do cansaço acumulado, as dores de costas começaram a aparecer, nada que a motivação desta ser a última etapa e uma boa dose de Voltaren, não dessem conta do recado!
Bolhas protegidas, pés ligados, mochilas às costas, mazelas à parte… cá vamos nós…
O pequeno-almoço foi mais um momento de partilha. Reunimos tudo o que tinha sobrado e o estômago lá foi enganado…. Só queria aquecer de alguma maneira e um café com “leche mui calientito” era uma miragem!...

A partida foi feita em silêncio, não me recordo de termos tirado a foto da praxe. O intenso convívio de 24 horas associado a algum nervosismo ditaram pequenas clivagens no seio do nosso grupo. O ambiente pesado, combinava com a madrugada, pois o sol tardava em aparecer. Os primeiros kms foram quase sempre em alcatrão, o que acontece normalmente quando uma cidade está perto, assim como o frenesim das pessoas nas ruas. Muito cedo, entramos num café “beira de estrada”, onde mais uma vez os galegos demonstraram a sua hospitalidade para com os peregrinos, ofereceram bolos e biscoitos para acompanhar as bebidas quentes, um gesto muito simpático e de louvar. Até uma brigada de trânsito, que também tomava o pequeno-almoço, se mostrou jovial e simpática para connosco. Penso que antigamente deveria ser mais frequente este tipo de hospitalidade sem pedir nada em troca, no entanto constato cada vez mais que os Caminhos de Santiago começam a ser uma importante fonte de turismo na Galiza.

Mochilas às costas, mais uma vez e lá partimos para a intempérie, uma vez que a chuva não nos dá tréguas. Esperam-nos uns longos 13 km, cinzentos e cheios de neblinas, o cansaço acumulado ao longo de uma semana apodera-se lentamente de mim. Maldito alcatrão!

Deixo-me ficar para trás, faço a minha retrospectiva desta grande lição de Vida. Conheci pessoas extraordinárias, quer pela sua sabedoria, quer pelo humor, compreendi a palavra partilha, a força do acreditar, a união, a desilusão, o desespero, a alegria e talvez o mais importante o Silêncio.
O “grande silêncio” associado a tão belas paisagens nos vários momentos do Caminho, reflecte-se em agora em mim num estado de espírito tão essencial e tão necessário como a azáfama do nosso quotidiano.

O último dia, foi para mim, sem dúvida o mais duro; as dores nas pontas dos dedos dos pés a baterem contra a bota, durante as descidas em alcatrão, o ambiente carregado e o constante mau tempo, fez com que o percurso, apesar de curto, fosse penoso e custasse tanto a percorrer. Sabia que estava perto do nosso destino, as zonas industriais não enganam. Aos poucos começamos a cruzar-nos com outros peregrinos que vinham de outros destinos. Um misto de alegria e tristeza ao mesmo tempo apodera-se de mim, está a acabar…

A nossa vida paralela e rotineira está à nossa espera, missão cumprida, que alegria: Santiago à vista!!! Um dos momentos que me marcaram, por entre nuvens carregadas, foi vislumbrar as torres da Catedral de Santiago, como se de uma visão se tratasse. Toda a dor é esquecida, todo o desconforto posto de lado, está quase!! Que orgulho, chegamos todos juntos a Santiago, uma cidade que guardaremos para sempre no nosso coração, tantas vezes visitada mas agora, também compreendida. O nosso momento, o meu momento, foi uma conquista algo inesquecível, uma primeira vez.

De sorriso rasgado e com palavras de ânimo de outros peregrinos, lá entramos nas movimentadas ruas de Santiago, o destino final o km 0. Situado no centro da praça Obradoiro, mesmo em frente à Catedral de Santiago. Calcorrear aquelas ruas medievais, tantas vezes a porta de chegada de peregrinos ao longo de séculos, fez-me sentir pequenina e deixo-me envolver por todo o frenesim. No meio dos turistas que nos olham espantados, entre os companheiros de viagem a cumplicidade é muita. Avisto a Catedral com toda a sua plenitude, gelo por uns instantes antes de rejubilar de alegria. Misturamo-nos nessa continua descarga de adrenalina, que é a chegada dos peregrinos à praça. O momento que tanto aguardávamos ali estava ele! Sereno e ao mesmo rejubilante!

Sento-me no chão no meio da praça, encostada à minha companheira de viagem, a mochila, que tantas vezes me pareceu pesada e de repente torna-se tão leve que não me consigo separar dela! Custa-me tirá-la das costas, já faz parte de mim e sem ela sinto-me incompleta.
Contemplo de frente a Catedral e por momentos ignoro toda a gente à minha volta. Estou sozinha, guardo esse momento inexplicável só para mim, e que sem dúvida me vai acompanhar pela minha vida fora; uma lição de vida, e de crescimento pessoal. Não consigo evitar as lágrimas (espero que ninguém se aperceba), agora entendo o Caminho de Santiago, não é mais do que uma metáfora da nossa Vida!

Caminhos e decisões que tomamos seguindo este ou aquele ensinamento, aqui representados pelas vieiras e setas. Caminhos difíceis, pequenas conquistas, que não são mais do que as várias etapas na nossa vida, boas escolhas, más escolhas, privações, choro, alegria, amor. Pessoas que entram e saem da nossa vida são representadas por quem nos cruzamos ao longo do caminho, e por fim, após percorrer o Labirinto da nossa Vida, o Destino Final, seja ele religioso, pessoal, místico ou simples prazer. O nosso destino pode estar traçado mas as nossas escolhas que nos levam a enveredar por determinados caminhos em detrimento de outros fazem com que a nossa Vida seja tão única.

Vou voltar, com toda a certeza, tenho tantas perguntas sem resposta, tantas pessoas por conhecer, tantos trilhos para calcorrear e tanta curiosidade de saber o que está mais além.
Sim regressarei, um dia….

Texto by Lai
Fotos by Sight